terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O silêncio de Monsaraz




Deixei de ouvir o silêncio,

E como um pássaro de fogo reparti o meu voo
Neste espaço sem limites, sobre o rio que vai vagando
Em direcção ao oásis onde solto o meu mundo de harmonias
Sobre um cosmos doutra galáxia no interminável universo.
Descobri enfim o ser mítico que me domina.
Vesti a pele de alazão sem freio
Desfazendo o nó de cerdas pagãs do meu dossel.
Corri embriagado entre montanhas cobertas de tojos
E campos de feno cheirando a centeio.
Sentei-me no morro mais alto da vasta planície
E de olhos fechados planei no horizonte
Sentindo a liberdade do vento, nas crinas do meu corpo de corcel.
Entre masmorras de seculos inscritos em blocos de granito,
Subiram ameias duma fortaleza que o céu guarda entre nuvens.
Nas sombras fervilha o tempo contado,
Pelas paredes brancas do casario engalanado,
Para as festas, que um dia serão retratos dum rito
Onde figurarão as almas gentias, dum monte de soberanas imagens.
Ribomba o martelo contra o bronze forjado duma campânula cristã,
DLIM DLOM… DLIM DLOM… DLIM DLOM…
Repete a compasso o som que se ouve assinalando o resgate da vida
Tirada ao tempo, para o canto de odisseias, veneradas nos papiros bíblicos,
Contadas aos fiéis incrédulos que enchem o átrio da mansão ornamentada
Pela torre altaneira de janelas abertas de onde vem o som do martelo que ribomba…
DLIM DLOM… DLIM DLOM… DLIM DLOM…
Projectando o som para o horizonte que a vista vai absorvendo até à linha ténue,
Que se vislumbra no infinito, unindo o céu ao mar.
E o mar estendeu as marés engolindo um pedaço de terra
Que deu vida ao lago de muralhas marginais.
Fundaram-se ali os anseios e as vaidades
Dum rio doutros pontos cardeais
Abrindo, entre distâncias ancestrais,
As portas de dois caminhos, esteios de rivalidades.
Silhuetas de pedra recortam as vastas planícies,
Palcos de guerras retalhados por mãos inclementes
Que brandindo espadas sangraram as margens do rio
Onde jazem ambições
Rendidas pelo pungente labor das correntes.
Sibilam trinados entre o florear da primavera fremente
No manto verde da esteva ao sol estendida,
Emerge na planície espalhando pelo ar os odores quentes
Duma vida a despertar
Neste espelho de paz bem vinda.
Como oásis, num deserto de essências selvagens,
O casario branco ampara o povo sentado,
Nas ombreiras azul celeste, revivendo o passado.
O sol tisnou-lhes a pele e deu luz ao seu olhar
Da planície veio-lhes o sonho duma terra a cantar

Num lento e compassado embalar
Os versos que são a vida, das suas amadas paragens.
O tempo que foge entre mãos enrugadas dos anciãos
Deixou cenários de vida longínqua
Contando histórias de civilizações que não morrem.
São restos de memórias alimentando gerações
De seres retratados na evolução que o tempo não deixou para trás.
Em palcos rústicos compuseram seculos de vida despida
Pousando na sombra da cristandade
Cimentada em cada pedra de templos ancorados
Nos campos onde eram pão as sementes da terra cíclica,
Talismã da fertilidade.
Pela defesa de condados conquistados
A outros povos, que das suas terras demandaram
Para ocupar longínquos lugares no seu delirante desejo de cobiça,
Os muros ao alto foram elevados,
Entre ameias ergueram-se os povoados,
E do alto das suas torres as portas aos infiéis fecharam
Guardando entre muros, aquele reino sagrado,
Onde o céu pintou de azul, as paredes de caliça.
Dei a volta á terra abençoada pelo sol que aquece a planície
Voltei ao lugar onde me vesti de capa e espada
Pousei na fonte do vasto manto de água gelada
Saciei a sede, desfiz a fome, soltei um grito bem alto,
Para que o horizonte o ouvisse.
Senti a penumbra no meu deambular entre nuvens de Osíris
Tirei a espada de Hercules
Despi a capa de Plínio
Desfiz-me da mortalha rúbea do meu lastro mitológico
Escondi a pedra do sonho conquistado
No meu dorso de corcel recompensado
E no retábulo da vida com meus dedos acertei o relógio
Do sol que lentamente voltava para o aconchego doutros lugares
Deixando no ar a cor nostálgica dum deslumbrante entardecer
Sentei-me na torre mais alta do castelo escondido na bruma
E tornei a ouvir o silêncio  














Peço desculpa aos fotógrafos por usar as suas fotos sem autorização e não os mencionar nos créditos. Tentei por um bocadinho de todos mas correu mal e não couberam e já não me lembro quais pertencem a quem. Pá próxima corre melhor e quando me encontrarem podem puxar-me as orelhas



 joaocasaldafonte



















segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A outra ladeira da Fórnea



É de facto magnífica!
Não estou a falar da ladeira, essa faz parte duma imponente mastodôntica grandiosa estonteante gigantesca irreverente desafiadora cratera embutida nas paredes da serra talvez, quem sabe, empurrada por um meteoro que ali entrou em alta velocidade para fazer a cama aos dinossauros que naquele lugar tinham o seu habitat.
Toda aquela monumentalidade tem á sua volta inúmeras vertentes por onde a mais louca ousadia arregaça as mangas e vai por ali acima até não haver mais escarpa para espezinhar. Todas elas arrepiam, todas elas exigem esforços que nem todos os corpos suportam, todas elas dão que fazer a quem fecha os olhos e vai atrás da vontade de superação das suas capacidades e, no fim, quando os abre, vê que não há impossíveis, há o querer, e ir até onde puder.
Foi assim numa vertente há muito tempo descoberta e vencida. Essa já se sabia como era. Após uma primeira vez a segunda confirmava e, à terceira, entre tantos outros desafios ali propostos, era como moer o mesmo trigo varias vezes e a farinha não ficar mais fina por isso. A tentação estava lá, irresistível. Resistir-lhe deixava a amarga incerteza do que era ou não possível fazer.



A loucura nunca teve como fim a ponderação. Sempre deixou esse acto de reflexão para quem sofra de pindéricas doses de bom senso e, no momento de escolher entre o conhecido e o desafio que estava ali exuberantemente estendido serra acima, fixou-se nos seus princípios e galgou a ladeira como se de trinchar um belo peru assado no forno para deglutir numa abençoada ceia de natal se tratasse. Acção bem contornada ao primeiro take, o peru estava excelente e, apesar das incertezas quanto ás capacidades para o retraçar, foi uma limpeza tão eficaz que nem os ossos sobraram para que o canito tivesse a sua ceia de natal. Estava vencida outra vertente da Fórnea. Foi um pouco como se sentiu toda a tripulação da armada que o Vasco da Gama conduziu na descoberta do caminho marítimo para a India. Os mercados, que já naquela altura cá chegavam, vinham por caminhos terrenos, depois passaram a vir por mar.

A Fórnea não tem mercados nem tem mar.
Tem no seu ventre uma rocha escancarada por onde jorra uma cascata de água cristalina que vai descendo serra abaixo abrindo caminho entre margens que lhe vão dando forma de rio.
Tem uma beleza rude e estonteante que esmaga e cria sensações de pequenez a quem a contempla.
Tem, agora, dois caminhos abertos para se chegar ao alto das suas escarpas e abraçar as nuvens que por ali andam vigiando o horizonte que enche o peito e inunda o coração de quem se agiganta para lhe estender os braços.
É de facto magnífica! Não, não falo da ladeira!
É de facto magnífica a sensatez que impera no seio de certos grupos alérgicos ao bom senso, na hora de decidir entre o prazer dum estonteante despender de energias e um amortalhado remanso que só amassa os neurónios pela pasmaceira, decidem-se sempre pela primeira e, como não há excepção para regras fundamentadas na insanidade, quando no sopé do monte se vislumbrou de novo o segundo caminho todos disseram presente e sem hesitações nem contemplações, mandaram-se à ladeira como gato a bofe (eu bem queria levar o gato).
Dum momento para o outro a falésia encheu-se de pontos coloridos que se movimentavam por aqui e por ali procurando onde melhor progredir na sua ascensão. Uns, com asas nos pés, quase voavam ladeira acima tentando a superação do desafio que enfrentavam, a ladeira e eles próprios. Outros, mais moderados e sem outras ambições que não fosse chegar ao cimo, pisavam terrenos firmes e seguros procurando não exagerar nos esforços e retirando de todo o envolvimento o retrato do que iam vivendo monte acima. Por último os badochas, como eu, iam espreitando as peugadas dos de cima para pisar terreno já firme agarrando-se a tudo o que os ajudasse no esforço, gatinhado quando as forças o exigiam, enchendo os pulmões para os manter bem arejados e dando amiúde algum descanso ao coração que, com algum esforço, lá ia aguentando aquilo a que cabeça o condenara. Quando chegaram os últimos já os primeiros estavam frescos para nova ida aos grifos mas tudo o que se contemplou no alto foi igual para todos e, mais uma vez, não houve segundo take e o peru foi saboreado para o retempero energético merecido.
Foi de facto magnífico!
Haverá uma próxima. Não é garantido que seja a mesma. A Fórnea tem muitas ladeiras em outras tantas vertentes. Abre-nos os braços com amizade sempre que a visita-mos e tem as portas escancaradas para que a conheça-mos em toda a sua plenitude. Nós somos amigos da Fórnea e, já agora, se há tantas associações de amigos de tudo e mais alguma coisa, porque não uma associação Os Amigos da Fórnea…
Era de facto magnífico!
 
Escrevi isto a ouvir Mike Oldfield, álbuns Ommadawn  e  Tubular Bells
São de facto magníficos! 






Muito obrigado aos fotógrafos: Amadeu Aníbal Gonçalo Cristina Isaura e se me esqueci de algum peço desculpa, vocês são muitos e todos bons


joaocasaldafonte