Entrara para a GNR convicto de
que a ordem e a justiça iriam deixar de ser o caos e desconforto que imperam na
sociedade quando, com os seus prestimosos serviços, a caça à reprodutora gatunagem enchesse as prisões deixando as ruas limpas para que,
em sossego e sem temor, os cidadãos gozassem a liberdade a que têm direito. A
sua dedicação total e a folha de serviço sem nodoa, levaram-no à promoção a
sargento antes do tempo exigido para o efeito e, dai, ao comando duma esquadra,
levou menos tempo do que o que teve para colocar os distintivos.
Tinha como ambição ser detective.
O seu mestrado, dizia-o, ia de Poirot a Holmes passando por Maigret, Bond,
inspector Closeau e Get Smart. Da televisão sugava todas as series policiais,
tendo um carinho especial pela que tem uma equipe que procura pessoas… “Sem rasto”. Sentia-se em absoluto coberto de
todas as faculdades requeridas para pôr em prática os processos de investigação
que detectam e apanham criminosos para os condenar e, em consequência, reparar
os males que eles deixam pelo caminho. Mas, as investigações aos abanões
provocados pela insolente vilanagem, na sua zona de acção, passavam para outros
departamentos de sabedoria analítica, e o processo levava com todas as práticas
previstas nos manuais que nas escolas para detectives ensinam. Era coisa muito científica.
Para ele um pouco inútil, achava que indo atrás do faro com a intuição ligada,
bastava para descobrir os desordeiros. Só que, na sua rotineira e penosa tarefa
de caçar multas, nunca tivera oportunidade de o demonstrar.
Conhecia toda a costa da Ericeira
ao Cabo da Roca e todas as praias nela arrumadas mas, a elas só chegava quando
chamado para autuar as infracções ao código de estrada ou para pôr ordem em
arrufos de automobilistas zangados por estarem cientes da sua razão ao tentarem
passar dois num espaço onde só um cabia e os para choques das viaturas sofriam
os danos dum encosto inevitável.
Tocou o telefone e ele pensou
tratar-se de mais uma desobediência civil ao bom comportamento. Quando do outro
lado veio a denúncia de rapto, as orelhas esticaram para que o canal auditivo
aumentasse e o seu receptor de informação captasse em melhores condições o que
era emitido na outra ponta do fio. Apontou as notas que lhe eram enviadas e
preparou-se para investigar no terreno este caso que lhe caíra do céu, por
sorte no seu telefone e num dia de descanso para as patentes mais sapientes.
Tirara da gaveta o que aprendera e
munira-se de toda a perspicácia para levar em diante a investigação que a
denúncia exigia. Em menos de três horas indagou, observou, deduziu e foi
seguindo o rasto deixado na pista até à Praia do Magoito onde se encontrava. O
rasto acabava ali, era ali o centro da investigação.
Foi recolhendo informação, pela
rua ou no restaurante, entre os passantes que por ali andavam e, com ajuda do
seu olho de falcão, a dedução era óbvia: andava por ali um grupo altamente
suspeito que dali partira nas primeiras horas da madrugada deixando viaturas
que, seguindo a sua intuição, deveriam estar à espera dos respectivos donos.
Era portanto um caso para pôr em prática outro dos seus brilhantes predicados:
a paciência. Pacientemente esperou pela fonte suspeita com a convicção, sem
reservas, de que esta lhe traria a solução para o crime que finalmente lhe
daria o devido reconhecimento.
A espera permitia-lhe um pouco de
evasão ao seu casulo profissional. Vestiu os calções de banho e mergulhou nas ondas
que o mar fazia morrer na areia. Quando despertou do seu breve sonho, pagou o
café que bebera e o travesseiro que comera e foi para o miradouro sentir a
brisa vinda do oceano que banhava aquela bonita estância de veraneio. Ali,
embebido no enlevo de tão encantador isolamento, juntou os pedaços do que
investigara e foi compondo a solução para o caso, faltava-lhe ouvir o ou os
suspeitos para concluir o processo e um sorriso invadiu-lhe o rosto, o caso era
seu e ninguém iria deixar nos padrões do esquecimento a celeridade da sua
conclusão.
Alarido galhofeiro era o que
vinha duma arriba ali ao lado, olhou nessa direcção e viu um grupo de gente
animada que chegava de mochila às costas abancando no passeio enquanto faziam
algazarra tão estridente que o mais duro de ouvido ouviria sem esforço.
Desmochilaram-se e iniciaram uns estranhos movimentos com comando repartido por
peritos na arte a que os ignorantes obedeciam fazendo figuras de rara
anormalidade. O patusco bailado, que era o mais parecido com o que estavam a
fazer, estava bonito e bem disposto mas ele tinha uma missão a cumprir e
esperar mais podia amolecê-lo retirando-lhe
objectividade crucial para o
inquérito, por isso:
- Boa tarde! Fala-vos o Sarg
Mendonça oficial da GNR, peço desculpa por interromper as vossas brincadeiras mas
tenho urgência em falar com alguém que represente este grupo…
- Sou eu! Pode falar comigo!
Passa-se alguma coisa?
- O seu nome por favor?
- Francisco!
- Sr Francisco! O que se passa é
que os srs são suspeitos de terem cometido um rapo e eu necessito de vos fazer
umas perguntas, solicito a vossa presença, sem recusas, na esquadra sob o meu
comando.
- Rapto!? Mas afinal quem
raptamos nós? Desculpe mas não vamos ser detidos sem mais nem menos.
- Ora ai está um indício de culpa!
O Sr. não nega o crime apenas ignora o género e a identidade da vítima! Quanto
ao não quererem ser detidos mostro-vos o documento que vos intima à presença na
esquadra para interrogatório. Façam favor de me acompanhar.
Na esquadra e numa sala cheia de
gente agora mais carrancuda.
- Ora vamos lá! Facultem a vossa
identificação ao Cabo Cosme para que fiquem registados nos autos. Quanto a nós
sr Francisco, conte-me quem sois e o que fizeram hoje até ao nosso encontro?
- Oh sr Agente…
- Sr Sarg Mendonça se faz favor!
- Peço desculpa! Sr Sag Mendonça,
nós somos um grupo de amigos que se encontra um dia por semana, aos fins de
semana, para fazermos umas caminhadas, hoje foi mais um, encontramo-nos na
Praia do Magoito e fomos andando por ai.
- Por ai por onde? Por onde
começaram por onde passaram?
- Então iniciamos atravessando a
praia, subimos e descemos os montes do outro lado…
- Espere ai! Está a dizer-me que
subiram aqueles montes a pique que não têm estrada nem caminhos por onde andar?
- Sim! Foi isso mesmo…
- Foi foi queu tava lá e
custou-me baita burro!
- Quem é você e onde foi arranjar
essa mini que tem na mão?
- Ê sou o “mechilas” venho com
eles e a mini veio dali do frignifique…
- Mas como é que você de lá a
tirou? Eu não consigo e já me lá vão algumas moedas.
- Só mencostê ó báu o resto ele
fez sozinho…
- Bem, traga uma para mim e fique
ai sossegado! Quanto a nós sr Francisco, e depois?
- Depois foi andar mais para o
interior por estradas, pinhais, planícies, algumas ladeiras, pequenas estávamos
a guardar as forças para mais tarde, e assim chegamos a Catribana onde fizemos
uma pausa para o Banana Time…
- Banana Time!? O que é isso?
- É o que chamamos à pausa para
comer qualquer coisa. Normalmente come-se uma banana por isso o nome e hoje até
tivemos bolinhos de canela para adoçar a boca.
- Huuuummm… e depois?
- Fomos andando até às arribas
que dão para a Praia da Vigia e dai descemos até lá abaixo…
- Desceram até lá abaixo!? Por
onde? Aquilo não tem caminho e o passadiço de madeira para além de partido nem
perto da ponta da arriba chega…
- Mas foi por um trilho que lá
existe que descemos, com cuidado, de joelhos, sentados, ajudando-nos uns aos
outros, foi duro, levou tempo… mas foi divertido!
- Huuuummm… e depois?
- Fomos pela praia e mais à
frente subimos a ravina pelo trilho…
- Dos pescadores! Esse conheço!
Só por lá passa quem vai para a pesca e quem vai para a praia andar com tudo ao
léu, é uma pouca vergonha! E depois?
- Depois o destino foi a Samarra!
Repousamos, almoçamos, uns banharam-se no mar, um ficou por lá…
- Um ficou? Quem? Precisamos do
nome dele! É suspeito como os outros, se forem considerados culpados ele também
o será. E depois?
- Subimos a falésia até ao topo…
- Pelo carreiro que passa ao lado
do rio de onde se vê uma Azenha?
- Não! Pelo monte que vai até à
ponta da praia…
- Mas isso é praticamente direito
e sem caminho! Quer-me fazer de parvo? Acha que eu vou acreditar nisso?
- Olhe… se não acredita é
consigo… eu só lhe estou a dizer a verdade!
- Huuuummm… e depois?
- Passamos pelo “Casal Pianos”,
fizemos a fotografia de grupo e o resto foi o destino que trazíamos quando
iniciamos a caminhada, chegados aqui já o Sr Sarg Mendonça sabe o que se passou.
- Muito bem! Um depoimento bem
elaborado e melhor decorado! Os Srs esperam que eu acredite naquilo que acabo
de ouvir? Subir e descer ravinas e montes sem caminhos além de…
- O sr. Sarg Mendonça dá licença?
- Diga Cabo Cosme!
- É que um dos acusados tem
fotografias que mostram por onde passaram!
- Mas você está do lado de quem? Mostre
cá isso!
- Huuuummm…
- Huuuummm…
- Huuuummm…
E mais alguns Huuuummm… depois
- Estão bonitas mas não provam
nada! Podem ser montagens! Agora há técnicas para tudo…
O proprietário da máquina
- Mass qui montagens? Nóss ainda
não sáimoss daqui!
- Ah mas podem fazer manipulação
ao tirar as fotos e fotos tiradas pelos acusados não podem servir de prova. Se
é o que têm para vossa defesa não chega e como tal passam de
suspeitos a acusados de rapto e sequestro dum individuo de raça canina…
Um coro de indignados
- UM CÃO!? SOMOS ACUSADOS DE
RAPTAR UM CÃO!? OUVIMOS BEM!?
- Sim! Ouviram bem! Vou coloca-los
em prisão preventiva onde aguardarão julgamento…
- O sr. Sarg Mendonça dá licença?
- Diga Cabo Cosme!
- Está um senhor ao telefone que
deseja falar consigo!
- Diga que não estou!
- Mas é o senhor que telefonou de
manha a denunciar o rapto do cão…
Há um enorme alarido na sala
- Chiuuu, calem-se, deixem ouvir…
estou sim fala Sarg Mendonça… … o cão já apareceu? Como o cão apareceu?... …
partiu a corrente e fugiu, e foi para onde?... … não sabe!? E agora onde é que
ele está?... … ah, já está em casa! bom eu tenho aqui os Srs que o
desencaminharam, quer acusa-los de alguma coisa?... … não quer acusa-los de
nada? E o que é que eu faço com eles?... … mal entendido!? Foi um mal
entendido!? Eu devia era prende-lo a si também! Com licença!
Desliga o telefone
- Bom, afinal parece que não
houve rapto!
- Se o Sr Agente nos tem dito do
que se tratava e acreditasse em nós, tudo isto era escusado… agora devíamos nós
acusa-lo por danos irreparáveis nas nossas vidas… queremos todas as acusações
contra nós apagadas os autos rasgados e um pedido de desculpas em directo nos
noticiários mais vistos das tv´s… podemos ir embora?
- Po… não! Ainda temos duas
acusações contra vós!
Uma viatura mal estacionada e distúrbios na via publica
impedindo o andamento duma viatura que passava!
Cabo Cosme traga cá os
processos!
- Sr Sarg Mendonça os processos
foram arquivados por falta de indícios
de culpa…
- Mas você está a falar de quê?
Então não há fotos e a denúncia dum condutor?
- Há fotos duma viatura mal
estacionada mas ao investigar o local verifiquei que a viatura em causa não
estava no parque que a foto mostra mas noutro e bem estacionada… quanto à
denuncia de mau comportamento, o denunciante retirou a queixa alegando que se
atrapalhara ao ver tanta gente e deixara a viatura que conduzia calar-se e, com
o stress a ralá-lo descarregou a ira nas pessoas que apenas se divertiam, há
uma foto que mostra isso mesmo.
Era difícil não perceber toda a
frustração transformada em ira por ver fugir entre os dedos grossos carregados
de anéis, o caso que o levaria às primeiras páginas dos jornais especializados
em escândalos, e foi com a voz embargada expelindo palavras azedas que disse:
- Não tenho nada contra vós podem
sair quando quiserem.
Num instante ficou sozinho na
sala. Ia levar o seu tempo a recompor-se do rombo que acabara de levar mas não
era de baixar os braços nem sacrificar a postura e foi já pensando que outra
oportunidade lhe apareceria quando entrou alguém
- Atão até mais ver mê sorjas…
- Você ainda aqui anda? Adeus! Já
pagou a mini?
- Ê na mê sorjas e na tenho many…
espere… BASTÃO Ó BASTÃOZINHO!
- Homem não esteja a chamar por
quem não está, se é alguém que veio consigo já foi embora à muito tempo e você
se não tem dinheiro fica aqui a fazer trabalho comunitário…
- Ó mê sorjas… trabalho ê sê o
qué i na gosto, agora isso do comutir…
- Comunitário! Fica aqui durante
uma semana a limpar as ruas e a dar o apoio que for preciso noutras tarefas…
Enquanto debitava sentença para o
rebelde solitário, dirigia-se para a arca onde as minis refrescavam…
- ONDE É QUE ESTÃO AS MINIS? A
ARCA ESTAVA CHEIA!
- Muita tempo aqui mê sorjas e
muita calor deu baita sede e uma atrás da outra lá foram…
- EU DISSE UMA SEMANA!? O VERÃO
TODO MAIS UM MÊS PARA TRÁS E OUTRO PARA A FRENTE… É ESSE O CASTIGO! E EU NÃO
SOU SORJAS! SOU O SR SARG MENDONÇA!!!!
Consta que o verão foi muito
curto para aquelas bandas… o trabalho comunitário já acabou…
joaocasaldafonte
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