Da janela via um risco em tons de
terra seca serpenteando a encosta entre muros de erva brava que vestiam, como
mantos de guerreiros engalanados pelas conquistas contadas, os socalcos duma serra
que subia na planície beijada pelo mar pousado no descanso entre duas ondas de
vaivém ameno que se espraiavam pelos salões imperiais de imponentes falésias.
O tempo limpo e radioso que o sol
fazia entrar na sala onde esperava o dia que pedira para saborear momentos de
repouso e vibrante adrenalina, tinha caprichos de coisa incerta, desfazendo,
num instante, o que prometera manter sem pedir sacrifícios que destruíssem o
palco já projectado para o cenário desenhado onde se iria desenrolar o bailado
coreografado.
A gota de água bateu na vidraça e
espalhou-se no rectângulo de um quarto da janela de onde o olhar partia
viajando em veleiros sem leme, à deriva pelas galáxias que o sonho alimentava. O
horizonte ficou turvo e a luz do dia ia esmorecendo coberta por um céu cinzento
que de repente os astros estenderam por caminhos que o olhar percorria. Não foi
a gota de água mas a enxurrada que com ela veio, a causadora do retiro para o
canto da renúncia ao que idealizara perante tão vasto e reconfortante cenário. O
dia, de cinzento passou ao tom negro duma noite órfã de luar e o risco foi
apagado na serra que se escondera entre o turbilhão de gotas que caiam em fios
de amarga petulância remetendo o sol para um retiro de humilde incumprimento do
que ao dia quisera conceder mas forças austeras lhe tinham usurpado.
Esperou porque os desígnios temporais
de ora não estão como outrora, por hábito de norma sazonal, nos seus lugares
arrumados. Esperou porque a esperança evita a rendição perante um estrondo, que
faz fumo e assusta, mas não deita abaixo a arvore que alimenta a floresta. A espera
compensou-o, mas não veio a tempo. Desligara ele próprio a luz que o iluminara
e, quando a claridade natural voltou, olhava por outro canto da janela e já não
via a montanha riscada que o encantara. Não perdera o encantamento e a tentação
mantinha-o atento a outros sinais que de lá viessem. Subiria a encosta e do fim
do seu risco voaria até à janela para de lá partir ao encontro de outros
lugares.
Da janela via um rio: liso como o
vidro que o separava da sala, onde resistia aos sonâmbulos condimentos da vida,
e a rua, onde corria contra as intermitências do tempo; azul, como reflexo do
véu que cobre a terra, quando o sol resiste ao desfilar de nuvens de negro
alimentadas, repondo no ar a centelha de fogo que ilumina o firmamento
dando-lhe o brilho dum cálice de prata polido ao amanhecer; mole como azeite
repousando no lagar depois de secas as azeitonas que lhe deram o suco denso e
precioso.
Procurou
na paz desértica de águas adormecidas, recantos onde retivesse memórias e retratos
duma passagem pelo retábulo onde as peças se movem pelo prazer do encontro
retemperador com as margens alienantes que o rio beija no seu caminho de
sobranceria sedutora. Era uma margem a transbordar de gente procurando uma fuga
ao mole refugio da dissolvente estrada do dia a dia onde aconchegam o corpo, a
contrastar com um caudal indolente, onde só as aves sinalizavam a vida, numa
serpente de água outrora navegada por druidas, que a libertaram de serras aragonesas,
abrindo-lhe caminho entre escarpas e planícies até ao mar de atlântidas praias
onde os povos lusitanos assentaram suas tendas.
Magia druitica ou tradição
navegante? A duvida assombrou-lhe a mente quando a vida naquelas águas abriu
passagem para um desfile de pirogas deslizando no manso leito do rio empurradas
por timoneiros de remo em riste que davam propulsão ao engenho pela força hercúlea
duma vontade de ser e ir, combatendo a natureza numa luta sã e reconfortante.
Da janela viu dois mundos, tão
distantes e tão próximos, inundarem-lhe a sala virada à luz nascente que
recebia a luz poente e, olhando pelos vidros já secos sublimando a
transparência, esqueceu as divergências com o tempo e assentou na agenda outra
rima para o poema onde se exalta o valor da vida
joaocasaldafonte
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